31 de maio de 2012

Crítica | Deus e o Diabo na Terra do Sol


O longa metragem “Deus e o Diabo na Terra do Sol” faz parte de um movimento da cinematografia nacional que surgiu no início da década de 60, denominado de “Cinema Novo”, do qual Glauber Rocha foi um dos precursores. Essa revolução, com um discurso crítico e ousado para a época, costuma ser resumida pela expressão “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”. Como “Deus e o Diabo na Terra do Sol” foi produzido anteriormente ao golpe militar no Brasil, ainda tratava das temáticas da realidade rural, como seca, fome e miséria, representando a primeira dentre as três fases do movimento: de 1960 a 1964, 1965 a 1967 e de 1968 a 1972. Glauber foi um diretor brasileiro e para brasileiros, porém é mais conhecido no cenário internacional. Ele recebeu mais prêmios em Cannes do que muitos diretores, até de maior renome como Martin Scorsese, que não esconde sua admiração por Rocha.




Na obra, é evidente a influência de algumas técnicas cinematográficas - como a ‘Nouvelle Vague Francesa’ – resultando na incorporação de certos valores estéticos, como as cenas que mesclam improvisos e dinamismo. Além disso, o filme vale-se de uma linguagem própria e metafórica, tendo com conseqüência uma leitura crítica da realidade. As influências artísticas da dramaturgia brasileira da época, como o Teatro de Arena de São Paulo e o Teatro do Oprimido de Augusto Boal, também podem ser observados, a exemplo da preferência por temas que incitem a reflexão sobre a realidade do país, além da escolha por cenas executadas de forma improvisada, com ritmo de peças teatrais e os movimentos típicos dessas encenações.

Glauber conduziu com muita originalidade esse filme, de temática aparentemente simples, ao contar a história de vida de um sertanejo envolvido pela miséria e fome do sertão que, sem qualquer expectativa de vida, fica literalmente entre a cruz e a espada (metaforizada na cena em que Corisco e Satanás estão assaltando a casa onde se realizava um casamento), entre “Deus” e o “Diabo”, evocando a alienação religiosa e a violência do movimento cangaceiro em que vive o povo do sertão nordestino.



"Vou contar uma história, na verdade, é imaginação. Abra bem os seus olhos pra enxergar com atenção. É coisa de Deus e Diabo, lá nos confins do sertão.”

Esta frase retrata bem o conteúdo do filme. Primeiro é preciso notar que se trata de uma produção inteiramente brasileira, pois mostrano decorrer de sua trama, aspectos e personagens típicos do nordeste brasileiro, bem como elementos de sua cultura. Vemos ao fundo uma paisagem típica do sertão, com carcaças e terrenos pedregosos.  Até a trilha sonora é nacional, com música de Villa-Lobos, compositor que Glauber não esconde a paixão, e cordéis escritos pelo próprio diretor.


O filme conta a história de um casal sertanejo, Manoel e Rosa, que tentam sobreviver às dificuldades do sertão. Manoel (Geraldo Del Rey) é um vaqueiro que se revolta contra a exploração imposta pelo coronel Moraes (Mílton Roda) e acaba matando-o numa briga. Ele passa a ser perseguido por jagunços, o que faz com que fuja com sua esposa Rosa (Yoná Magalhães). O casal se junta aos seguidores do beato Sebastião (Lídio Silva), que promete o fim do sofrimento através do retorno a um catolicismo místico e ritual. Esta parte do longa mostra com excelência o fanatismo que se desenvolve com o desespero, onde homens e mulheres deixam para traz suas vidas, seguindo um líder que exige provações, penitências e até mesmo assassinatos em nome da fé. Porém ao presenciar a morte de uma criança, Rosa mata o beato. Simultaneamente Antônio das Mortes (Maurício do Valle), um matador de aluguel, que representa o braço armado e a força dos coronéis nordestinos, extermina os seguidores do beato, a serviço da Igreja Católica e dos latifundiários da região. Neste momento do longa nota-se que os políticos e religiosos não estão preocupados com a situação do sertanejo, apenas com o poder. Apesar do serviço que presta, Antônio das Mortes é o único personagem politicamente consciente da história.

João das Mortes: [...] eu não tenho medo de guerra, vivo nela desde que nasci.
Cego Júlio: É matando, Antônio? É matando que você ajuda seus irmãos?
Antônio: [...] Eu não matei pelo dinheiro. Matei porque não posso viver descansado com essa miséria.
Cego Júlio: A culpa não é do povo, Antônio! A culpa não é do povo!
Antônio: Um dia vai ter uma guerra maior nesse sertão. Uma guerra grande, sem a cegueira de Deus e do Diabo. E para que essa guerra comece logo eu, que já matei Sebastião, vou matar Corisco e depois morrer de vez, que nós somos tudo a mesma coisa.

No fim, Manoel e Rosa seguem em direção ao mar, o qual representa a cidade e, consequentemente, uma nova vida. Simbolicamente, o casal torna-se os milhares de sertanejos que abandonaram suas vidas no Nordeste e foram para São Paulo, em busca de uma vida digna. Outro aspecto importante foi o fato da película ser filmada em preto e branco, como forma de enfatizar a dura vida do nordestino.
Percebe-se ainda a dualidade entre os personagens. Em determinados momentos eles são bons, representando Deus, e em outros momentos são maus, representando o Diabo. As figuras dramáticas possuem valores como o amor, a bondade e a humildade, entretanto, em decorrência dos seus sofrimentos, tornam-se capazes de matar na luta pela sobrevivência.

O cinema de Rocha é um desafio estético e moral. Pergunta mais do que responde. Portanto, para o espectador mediano, ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ pode tornar-se uma experiência demasiado cansativa, contudo para aquele que se dispõe a engajar-se, muito mais do que apenas imagens lhe será revelado.

A frase: “Uma guerra grande, sem a cegueira de Deus e do Diabo”, sintetiza o filme, pois é o cidadão comum que precisa agir, rebelar-se contra esse poder omisso do qual só presencia os mandos do poder político e da religião e é obrigado a sofrer por seus desmandos. Glauber põe as responsabilidades de mudança sobre o povo e, mais do que dar-lhe direito à voz, clama a usá-la. Só assim o “sertão vai virar mar”. Nessa época de greves em todo o Brasil, talvez, muitos deveriam assistir esta obra-prima do cinema brasileiro para passar a entender como, realmente, criar uma revolução.

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